A pandemia e a forçosa evolução dos contratos
Os efeitos da pandemia nos contratos tem sido um dos temas mais debatidos no campo do direito. É necessário refletirmos sobre o estatismo contratual e a necessidade de nos valermos de alternativas que conduzam à manutenção (e não à resolução) do negócio jurídico, garantindo o evolutivo (re)equilíbrio contratual. Há cláusulas e mecanismos, ainda pouco utilizados na maioria dos contratos, que podem auxiliar as partes nesse caminho.
Sexta-feira, 03 de agosto de 2020.
Priscilla Chater*
Os efeitos da pandemia nos contratos tem sido um dos temas mais debatidos pelos operadores de direito, especialmente as problemáticas que envolvem o cumprimento e a execução das obrigações neles dispostas, sob a ótica do instituto da força maior e do desequilíbrio contratual, este calcado nas teorias da imprevisão (art. 317 do CC) e da onerosidade excessiva superveniente (art. 478 do CC).
No entanto, o atual momento trouxe importantes reflexões sobre o estatismo contratual e sobre a necessidade de adoção, pelas partes e seus representantes, de mecanismos, alguns já usuais em instrumentos internacionais, para possibilitar alternativas que conduzam à manutenção (e não à resolução) do negócio jurídico.
Dominar esses métodos e alocar corretamente os riscos é de vital importância (sobretudo, diante desta era de “pancontratualização” das relações), além de assegurar o interesse de todas as partes contratantes que decidiram livremente negociar, norteadas pelos deveres comportamentais da boa-fé e do solidarismo, hoje, mais necessário do que nunca.
A propósito, são esses pilares que outorgam aos contratantes um poder jurídico amplo, dinâmico e flexível de criação, e permitem a evolução do pacto conforme suas particularidades, servindo de efetiva proteção ao contínuo equilíbrio contratual.
Nesse contexto, ganha especial destaque a cláusula de hardship, prevista no art. 6.2.3 dos Princípios Unidroit dos Contratos Comerciais Internacionais[1], segundo a qual as partes têm o dever de negociar diante de um evento externo à sua vontade, de ordem econômica, política ou social, que não poderia ser razoavelmente esperado e que altera fundamentalmente as bases do contrato de trato sucessivo, impossibilitando a execução das obrigações nos moldes outrora avençados. Trata-se, na prática, de cláusula corolária da rebus sic stantibus, que mitiga o pacta sunt servanda.
Pode-se afirmar, então, que a cláusula de hardship é uma cautela formal que resguarda a revisão diante do novo cenário decorrente da superveniência de fato imprevisível, tendo como objetivo a conservação do negócio jurídico e o restabelecimento do equilíbrio contratual.
É, ainda nessa linha de amoldar a relação e não resolvê-la, que, igualmente, vem à tona o debate a respeito do dever geral de negociar, defendido com afinco pelo jurista Anderson Schreiber[2] como um dever de conduta, abarcado em diversos ordenamentos, dentre eles, nos Princípios de Direito Europeu dos Contratos[3], especificamente no art. 6:111, que aborda a mudança das circunstâncias, determinando que as partes negociem com o objetivo de readaptar o contrato ou, sucessivamente, extingui-lo.
Não menos importante é a utilização da cláusula escalonada, através da qual as partes convencionam que antes de judicializar o conflito, este será submetido a um terceiro imparcial e capacitado com vistas a alcançar uma solução extrajudicial. Pode-se prever também que, na hipótese de uma mediação não exitosa, o conflito seja submetido ao juízo arbitral ou vice-versa. São as denominadas cláusulas med-arb ou arb-med.
Isso porque, há muito já se compreendeu que o embate judicial é moroso, custoso e desgastante para todos os envolvidos. De todo modo, todas essas cláusulas devem ser rigorosa e detalhadamente desenhadas (tailor made), observados os interesses mútuos, a função social do contrato e as disposições legais aplicáveis, sob pena de ineficácia ou futuro questionamento a respeito de sua validade.
Ainda, nesse sentido de valorizar a autonomia das partes, o atual Código de Processo Civil, em seu art. 190, inovou ao permitir a convenção de negócios processuais atípicos, de modo que, mesmo no caso da judicialização de questões relativas ao contrato, há espaço para se estabelecer um canal eficaz de diálogo entre os contratantes. Com fundamento nesse dispositivo, é possível a prévia pactuação de negócio jurídico processual que preveja, por exemplo, a suspensão forçosa do feito por um prazo razoável após a citação da parte contrária, para que, nesse viés de equalização dos interesses, busque-se, primeiramente, a autocomposição.
Enfim, são incontáveis os mecanismos que podem ser adotados para evitar a resolução contratual ou mesmo a habitual judicialização dos conflitos, passíveis de negociação extrajudicial, especialmente diante do dinamismo das relações obrigacionais e dos fatores externos e variáveis que as circundam. E aqui, cabe destacar a importância dos advogados na construção desse caminho cooperativo, solidário e, mais do que nunca, oportuno.
* Advogada e sócia do escritório Chater Advogados, em Brasília.
[1] UNIDROIT. Principles Of International Commercial Contracts. Disponível em: <https://www.unidroit.org/instruments/commercial-contracts/unidroit-principles-2016>. Acesso em: 30 de jul de 2020.
[2] SCHREIBER, Anderson. Dever de renegociar. GENjurídico. 16 de janeiro de 2018. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2018/01/16/dever-de-renegociar/>. Acesso em: 30 de jul de 2020.
[3] TRANS-LEX LAW RESEARCH. Disponível em: <https://www.trans-lex.org/400200/_/pecl/>. Acesso em: 30 de jul de 2020.