Os reflexos da COVID-19 no setor da construção civil
Por Priscilla Chater
terça-feira, 09 de junho de 2020.
O estimado aumento da judicialização de conflitos pós-pandemia tem como indicativo alguns setores, dentre eles, o da construção civil. Se em 2019 o mercado imobiliário aqueceu a Bolsa de Valores, apresentando o melhor desempenho, hoje, as empresas de capital aberto, incluindo aquelas que recentemente abriram oferta pública, amargam severas quedas no mercado financeiro.
Embora as obras em curso, em sua maioria, não tenham sido paralisadas durante a pandemia, o setor será sensivelmente afetado com a instabilidade econômica e o desemprego em massa. Se antes havia uma projeção de crescimento, é inevitável que o mercado sofra uma forte retração, já que, como efeito consequencial da queda da renda per capita, as vendas cairão.
Teme-se que, repetindo o histórico de anos anteriores, as incorporadoras passem por meses de “venda negativa”, quando os distratos superaram as vendas ou, ainda, diante das medidas restritivas de isolamento, advenham reiterados atrasos na entrega das obras. Como consequência, pode haver o desencadeamento de uma enxurrada de ações judiciais envolvendo a rescisão de contratos de compra e venda de unidades imobiliárias e o debate a respeito das penalidades.
Foi exatamente em razão da multiplicidade de demandas e de entendimentos, com vista a combater eventuais abusividades, que emergiu a Lei Federal nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018 (denominada Lei do Distrato), como marco legal e regulatório das relações contratuais de imóveis “na planta” (incorporação) e em loteamento estabelecidas após a sua entrada em vigor.
Resumidamente, de acordo com a mencionada Lei, se, antes da entrega das chaves, o adquirente desistir do negócio, este terá direito à restituição do valor pago (atualizado conforme o índice previsto no instrumento), deduzida a comissão de corretagem e a multa contratual não superior a 25% do montante até então pago. Entretanto, quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, a multa contratual pode ser estabelecida em 50% (ex vi do art. 67-A da Lei 13.786/18).
Em casos de desistência após a disponibilização da unidade imobiliária ao adquirente, este, além das penalidades acima destacadas, responderá, ainda, pelas quantias correspondentes aos impostos reais incidentes sobre o imóvel; cotas de condomínio e contribuições devidas a associações de moradores; valor correspondente à fruição do imóvel, equivalente a 0,5% sobre o valor atualizado do contrato, pro rata die; demais encargos incidentes sobre o imóvel e despesas previstas no contrato.
Já o incorporador, na hipótese de atrasar a entrega da obra, ultrapassado o prazo de 180 dias – período no qual não haverá incidência de qualquer penalidade -, o adquirente poderá formalizar o pedido de resolução do contrato, no prazo de 60 dias, requerendo a devolução integral da quantia paga, devidamente atualizada, acrescida da mesma multa contratual estabelecida ao adquirente, ou, aguardar a entrega da unidade imobiliária, fazendo jus, a partir desta ocasião, à indenização de 1% do valor efetivamente pago à incorporadora, para cada mês de atraso, pro rata die, corrigido monetariamente conforme o índice estipulado em contrato.
Relativamente ao atraso, retoma-se aqui a questão dos percalços gerados pela pandemia. Inevitavelmente, alguns empreendimentos tiveram o seu andamento obstado ou desacelerado, total ou parcialmente, fazendo emergir disso a possível alegação do instituto da força maior, segundo a qual o devedor não responde pelos prejuízos decorrentes de fatos cujos efeitos não lhe era possível evitar ou impedir.
Nessa linha, se a causa for externa e alheia à atividade empresarial e seus efeitos forem imprevisíveis e irresistíveis, entende-se que há a quebra do nexo de causalidade (vínculo que liga o efeito à causa) entre o comportamento esperado do incorporador e o dano suportado pelo comprador, o que conduz à exoneração (provisória) de sua obrigação. Evidentemente, a análise dependerá da robustez das provas materiais apresentadas no processo.
Em contrapartida, a obrigação contratual assumida pelo adquirente consiste numa obrigação de pagar, diferentemente da obrigação da construtora, que é de fazer. Assim, em regra, não haveria uma real impossibilidade de cumprimento daquilo que foi pactuado, que consiste no pagamento parcelado (obrigação pecuniária) daquilo que, em tese, poderia ter sido pago à vista. A repentina diminuição de renda pode, na interpretação de alguns magistrados, não atender ao critério da imprevisibilidade, mesmo que oriunda da pandemia.
Por isso, há de se ter em mente que as dificuldades são e serão, por um bom tempo, bilaterais, de modo que com esteio nos princípios da transparência e da boa-fé, as incorporadoras e construtoras devem alertar os compradores a respeito das dificuldades e eventual necessidade de prorrogação do prazo de entrega, ajustando, sempre que possível e em contrapartida, o diferimento, o desconto e outras facilidades para o pagamento das prestações.
Por outro lado, os adquirentes devem buscar renegociações ou, alternativamente, tal como autoriza a Lei, indicar um novo comprador capaz de assumir os seus direitos e obrigações contratuais. Havendo anuência do incorporador quanto à substituição, não incidirá a cláusula penal contratualmente prevista, evitando-se, com isso, o retrocesso da excessiva judicialização de demandas passíveis de solução amigável.
* Advogada e sócia do escritório Chater Advogados, em Brasília.
Artigo publicado no Jornal O Hoje (veículo impresso).